Jacinda Ardern: o seu próprio tipo de líder



A 7 de fevereiro, Jacinda Ardern deixa o cargo de Primeira-Ministra da Nova
Zelândia (primeiro país do mundo a reconhecer o direito de voto às mulheres, ainda no
século XIX, em 1893). Notícia pouco mais do que banal, tratasse-se meramente da saída
de uma Primeira-Ministra, porquanto – hipérbole salvaguardada – todos os dias caem
titulares de cargos políticos, numa qualquer parte do Mundo.
Juntar-se-ia a Micheál Martin (Irlanda), Narendra Modi (Índia), Benjamin Netanyahu
(Israel), Scott Morrison (Austrália), bem como a Boris Johnson e à sua brevíssima
sucessora, Liz Truss (Reino Unido), todos Primeiros-Ministros que, voluntariamente ou
não e pelas mais variadas razões, também deixaram os seus cargos em 2022 e 2023.
Porém, a saída de Jacinda Ardern oferece tantas reflexões como a postura que imprimiu
aos seus mandatos. A forma como exerceu o poder político ficará indelevelmente
marcada na História da política mundial. A influência que exercerá (ou não) no futuro
do acesso de cargos políticos por mulheres é algo que estudaremos nos próximos anos.
Jacinta Ardern foi eleita em outubro de 2017, aos 37 anos, e tornou-se a mais jovem
Primeira-Ministra da Nova Zelândia em 150 anos. Em 18 de junho de 2018, deu à luz um
filho, encontrando-se em pleno exercício do cargo, tendo sido a segunda líder partidária
neo-zelandeza a fazê-lo e a segunda Primeira-Ministra no mundo (também Benazir
Bhutto deu à luz o seu filho Zardari, em 1990).
No entanto, ao contrário dos demais casos referidos, Jacinda foi a primeira mulher em
funções a exercer o seu direito à licença de parentalidade. Durante as seis semanas que
se seguiram ao parto (período particularmente curto à luz do Direito português mas
usual nos países anglo-saxónicos) esteve em casa, a restabelecer-se e a cuidar do seu
filho recém-nascido, tendo depois voltado a exercer o cargo, como qualquer outra trabalhadora.
Reeleita em 2020 (algo que não acontecia há três décadas no país), Jacinda enfrentou
diversos desafios de relevo. Destaco dois, pela forma como se posicionou face a eles: o
atentado de Chirschurch, em 2019, e a pandemia de Covid-19, a partir de 2020. Não se
trata, mais uma vez, de eventos de particular singularidade: lamentavelmente, os
atentados com armas de fogo são uma ocorrência quase quotidiana em países com
regimes jurídicos protetores do uso e porte de armas, como os Estados Unidos, e a
Covid-19, pela sua natureza pandémica, foi transversal à gestão de todos os líderes
políticos do Mundo. A postura de Jacinda Arden foi, todavia, diferente, distintiva e
inovadora, em ambos os casos.
No rescaldo do massacre à mesquita de Chrischurch, Jacinda repudiou, expressa e
veementemente, as visões extremistas, proclamando que “não têm lugar na Nova
Zelândia” e recusou-se, em todos os seus discursos, a proferir o nome do agressor,
negando-lhe o ansiado minuto de fama. Ao invés, centrou-se nas famílias enlutadas, às
quais ofereceu, não apenas solidariedade institucional, mas abraços físicos. Um desses abraços, com um membro da comunidade muçulmana de Chrischurch, foi depois
projetado no Burj Khalifa, como símbolo de ecumenismo e paz.
Liderou com sensibilidade e empatia!
De seguida, promoveu a alteração da legislação sobre o uso de armas, dificultando a
entrada de armas no país, impondo restrições rigorosas à posse de armas de assalto e
obrigando ao registo da posse de armas de fogo.
Liderou com audácia e intrepitude!
Num momento em que o país tinha 102 casos e zero mortes, Jacinda ordenou o
encerramento de fronteiras e a quarentena obrigatória nacional, protegendo de forma
firme e destemida a saúde pública do seu país, cujas características insulares o tornam
particularmente vulnerável a uma crise pandémica. Fê-lo sem apoio unânime. Fê-lo à
custa da vasta popularidade de que gozava até então.
Liderou com veemente prudência!
Finalmente, ao anunciar a renúncia, destacou-se igualmente. Declarou que se afasta
porque se esgotou o “combustível” para liderar da forma que entende necessária. E
explodiu em todos os fora mundiais, imprensa e redes sociais, a palavra burnout. À
exceção de Horta Osório, que se afastou há alguns anos das cúpulas da banca britânica,
não me ocorre nenhuma outra pessoa que tenha tido o arrojo de assumir uma situação
de burnout. E nenhuma a este nível do poder político.
Sabemos que Jacinda sai para proteger a sua saúde mental e a integridade da sua vida
pessoal e familiar. Sabemos porque ela o disse! Disse-o, ao contrário de tantos outros
que tudo fizeram para ocultar motivos mais ou menos desonrosos para sair (as festas
pandémicas de Boris Johnson ou a indemnização indevida de Alexandra Reis).
Liderou com transparência e verdade!
E, com tudo isto, criou um legado único, do qual talvez nem ela se tenha ainda
apercebido: o de, sendo mulher, liderar ao mais alto nível sem se encaixar no modelo
pré-formatado de poder. Sem se submeter a um modelo masculinizado de liderança,
que valoriza o sacrifício absoluto da vida familiar, que exalta a força, a frieza e a
competição, num mundo onde a saúde mental dos líderes se serve como um dado
adquirido e inabalável, numa narrativa de executivos perfeitos, à prova de tudo.
O acesso das mulheres ao poder político não pode continuar a consistir no encaixe de
um número maior ou menor de mulheres (consoante existam ou não/funcionem melhor
ou pior as quotas e leis de paridade) num fato e gravata, pronto a vestir, usado por
homens há séculos. A nova forma de poder – o poder paritário – há-de ser exercido por
pessoas líderes, que vestem o seu próprio fato, tailormade para a sua forma de
liderança.
Jacinda saiu agradecendo aos neo-zelandeses terem-na escolhido: “Espero que, em
troca, eu tenha deixado a convicção de que se pode ser gentil, mas forte. Empático, mas decisivo. Optimista, mas focado. Que podemos ser o nosso próprio tipo de líder — um que sabe qual é o melhor momento para sair".

Como mulher, cidadã e pessoa que acredita veementemente num direito à governação paritária, eu é que agradeço!

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